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Archive for the ‘O Templo’ Category

CRISTO É PRETO

Obra de Marcelo Eco

Quando falo com vocês sobre Jesus Cristo, afro-oriental, de pele preta, não me refiro a uma interpretação pessoal, não faço de sua cor um desejo próprio, nem transfiro militância ao meu discurso. Falo sobre o que foi visto pelos profetas e depois por João, e que por eles foi relatado através de pedras escuras que desvelavam a cor da pele de quem era a eles revelado. Falo de uma árvore genealógica preta que está nas Escrituras e que foi deliberadamente escondida, ignorada, desacreditada e agora vista como aberração. Quando falo do Cristo que possui cor refiro-me ao que encarnado, em Jerusalém, pré Canal de Suez, não se furtou de assumir a tez predominante de sua localidade.
A necessidade do Cristo preto não se faz por uma sede e necessidade de vingança. Não se dá para construção de um céu preto onde brancos não entrarão. Não está em pauta um deslocamento do Cristo para uma determinada parcela da sociedade.
Quando insisto nesse discurso, o faço por um comprometimento hermenêutico. As interpretações não devem ser estabelecidas pela retratação branca européia com suas ilustrações impositivas através de obras de arte. As interpretações precisam emergir do que fora revelado pelas Escrituras, e essas falam de um povo preto, hebreu, que se desenvolveu pelas terras da África (Egito) e do Oriente (Canaã). As Escrituras falam das tranças (dreads) de Sansão, da exaltação de Salomão às mulheres, que pelas características apresentadas só podiam ser pretas. Tratam ainda de revelações dadas a profetas e profetas que demonstram o Revelado, Jesus, com aparência de pedras escuras, como jaspe e sardônio, que para o tradutor, bastou interpretar por pedras preciosas, escondendo assim a importância de sua coloração na revelação do Ente.
Quando estaciono meu pensamento nessa premissa, o faço por uma necessidade de justiça e reestabelecimento da ordem nas Igrejas atuais. Salvo as exceções e resguardadas as ações cirurgicamente pensadas para se afastar a desconfiança de racismo, as igrejas produzem, mantém, sustentam e retroalimentam um sistema racista – outros sistemas também existem – que é estabelecido por um silêncio denso e palpável, e ainda demonstrado através de suas hierarquias cujos limites são estabelecidos para os que possuem determinadas colorações de pele.
Quando retorno e trago vocês para essa fala, o faço por entender que, se desde sempre o Cristo, Senhor da Igreja, motivação do Cristianismo, fosse visto como o é, e foi, preto, a dignificação do povo preto provavelmente não se arrastaria tanto no tempo e no espaço. As relações não se dariam baseadas na cor da pele – poderia se errar em outros sentidos – pois o Senhor das relações estabeleceria a dignificação da cor a partir Dele. Seria muito interessante ao se tratar da doutrina da encarnação não ser omitido a tez de Cristo Encarnado; ao se falar sobre a Imago Dei, incluir os que sempre estiveram destituídos da imagem e semelhança de Deus. O Cristo preto não se atreveria em saquear a África, oprimir a Índia, roubar as terras dos nativos de toda América. O Cristo preto não se rebaixaria em fazer com a Europa o que foi feito com os lugares anteriormente citados. O Cristo preto é Cristo de todxs. É o Cristo da dignificação do ser humano. É o Cristo que vê, enxerga, percebe o ser humano na existência, com suas mais variadas facetas e o conduz para a sua dignificação.
Lucidamente, sei que tratar desse tema em terras das quais fora estabelecido o reinado perene do Cristo europeu, causa desconforto até para aqueles que concordam com o racismo estrutural na sociedade. Sei que alguns dirão que isso não faz a mínima importância para o desenvolvimento do cristianismo. Outros nem chegarão até aqui, nessas linhas, devido ao comichão causado pelas palavras anteriores. Haverá quem diga que se politiza – virou moda – assuntos da bíblia. Uns, pautados pela Escola Bíblica Dominical e seus professores na grande maioria brancos que sempre ignoraram o racismo ou o difundiram nos bastidores, apelarão para a verdade, verdade branca e de branco.
Espero, espero muito, que pretos e pretas submetidos à branquitude cristã fundamentalista quebrem seus grilhões e vivam livres diante do Cristo preto, irmão na existência, na cor e na dor. Também espero, que brancos e brancas, renunciem ao status quo estabelecido pelas interpretações imperialistas e que não apenas abracem seus pares na existência, mas entendam o lugar deles no cristianismo de justiça.
Enquanto isso, continuaremos anunciando o Cristo preto, que não foi interpretado por pretos e pretas, mas encarnado na existência da humanidade, com sua tez e desfaçatez.

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encarcerados

Nós somos responsáveis pelo outro, estando atento a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas.

Zygmunt Bauman  1925-2017

 

E com tais incríveis palavras eu celebro Bauman e dou voz às grades manchadas de sangue dos presídios brasileiros.

Faz um bom tempo que anuncio uma tragédia que ocorre diuturnamente nos presídios, que não precisava ser percebida, pelos mais terríveis acontecimentos nos últimos dias. E faz muito mais tempo que o ser humano, deu as costas para um barril de pólvora que explode sempre que um encarcerado ganha as ruas sem ter sido recuperado como convém.

Todos os dias, um número significativo de presos ganha as ruas. E todo preso que chega, sabe que um dia sairá. Mas a sociedade sabe disso? Sabe que por mais tempo que ele passe trancafiado, chegará o momento em que ele retornará? O que fazer para que o encontro entre a sociedade (você, familiares, amigos, eu, …) e o recém-libertado não gere num impactante número de 80% de reincidência à carceragem? Creio que o preso deveria ter medo de ser preso. As penitenciárias deveriam gerar terror aos encarcerados. Elas deveriam promover tamanho trauma no preso, que quando solto, ele precisasse ficar “ligado” em todas as suas ações e pensamentos para nunca mais voltar para aquele lugar! O preso recém-libertado deveria sentir seu corpo tremer ao pensar em retornar para trás das grades.

Mas quais os métodos seriam usados? Nenhum dos que até hoje foram usados! Eles precisam sofrer diariamente! E só há uma maneira para que eles sintam dor! Tratando-os como seres humanos. Quem sempre foi destratado, já está vacinado para tais práticas de anulação do ser. Quem sempre foi desmerecido, entende a linguagem da anulação do ser. Quem sempre foi desacreditado, percebe as práticas ou omissões que traduzem o descrédito do ser. Quem sempre foi alvo de violência e a causou também, não se espanta com chacinas dentro de presídios, ou ameaças de carcereiros, que alimentam o ser violento. Quem sempre ouviu palavras que forjavam o pior de seu caráter, não se incomoda com as mesmas palavras ditas por outras pessoas, e que apenas comprovam o que ele imagina ser.

Hoje, as palavras de ódio e violência surgem de pessoas que não oportunizaram e sem perceberem, as mesmas sofrem as consequências desse amontoamento de gente entre grades. Essa fábrica do mesmo ódio! Esse polo de maquinações do mau! Essa escola de desumanização e banalidade da vida –  de quem está dentro e fora!

Por isso eles deveriam sofrer!

As oportunidades nos presídios deveriam ser o primeiro soco na boca do estômago recebido pelo preso assim que ele chegasse ao Sistema Carcerário. Uma sociedade que oportuniza mudanças, pode, se quiser, (eu não quero) reclamar a vida do preso que se recusou aproveitá-las. Sejam oportunidades profissionais, acadêmicas, religiosas, … todo preso deveria sentir o peso de negar a mudança concedida pelo Sistema. O Juiz se sentiria mais confortável em penalizar um reincidente que jogou fora toda oportunidade de mudanças. O júri, com mais autoridade em condenar. E todo sistema, mais forte e menos culpado em cumprir e fazer cumprir as leis.

O trabalho deveria ser a solitária mais cruel que ele poderia provar. Os sistemas não podem ser auto sustentáveis, ou corresponder por partes de seu custeio? A quem interessa repasse de verbas advindas diretamente dos governos? Redução progressiva da pena? Ninguém se aposenta antes por sua produtividade, mas recebe pelo seu trabalho. As famílias poderiam ser sustentadas através disso? Mas a quem interessa repasse de amparos financeiros?  O trabalho sim, seria a forma mais tangível dele entender as consequências de seus atos. Um fundo para amparo de vítimas(vítimas da violência e ou “vítimas familiares”) – através do trabalho do interno? Eles deveriam tremer diante de um trabalho digno!

Os programas de humanização do preso deveriam ser a cadeira elétrica mais potente das instituições. Não há dor maior, a que faz o ser humano voltar a se enxergar como tal. Para o ser humano se transformar em objeto, é um percurso mais fácil. Mas para o objeto se transformar em ser humano, é algo que gera dores como de um parto. Programas de humanização nos presídios deveriam servir como partos de pessoas, de gente, de humanos, para que pudéssemos então transferir para eles a dor dos que um dia sofreram em suas mãos. E assim, fazê-los provar dos remédios de gente: perdão, arrependimento, transformação, paz, alegria, auto-estima, … Antes da humanização nenhum desses remédios surtem efeito. Objeto não ingere antídotos, ele apenas serve de recipiente. Por mais que as instituições (Ongs, as de defesa, religiosas, sócias…) insistam em ministrar os remédios, de nada adiantará se não houver a humanização do encarcerado.

Os olhos de profissionais dignos e incorruptíveis deveriam servir de pena de morte para os encarcerados. Pessoas bem sustentadas e amparadas pelo governo. Homens e mulheres que por servirem a sociedade no tratamento de seus “algozes”, deveriam ser valorizados e a eles, oportunizado vidas dignas, de tal maneira que o estado também teria autoridade para punir exemplarmente quem não aproveitasse tal oportunidade. Nenhum olhar fere tanto, que o de pessoas íntegras, que não cedem às negociatas e não se vendem aos sistemas. Esses olhares também veriam gente ao invés de coisas, pessoas ao invés de objetos, seres humanos ao invés de deposito de ódio e violência. Eles veriam pessoas que pelas oportunidades voltariam em paz para a sociedade.

Os encarcerados precisam ser feridos através de um tratamento tão severo quanto é o evangelho. O evangelho (o verdadeiro evangelho) causa tanto constrangimento no ser, que envergonhado por aquilo que o ser pensa ser, espantando pelo caminho antes dotado de crédito e desanimado de planos fadados à falência, só lhe resta mudar de rota e adequar-se ao novo. Nenhum ser humano escapa da dor causada pelo verdadeiro evangelho!

Paulo, o da Bíblia, disse que agir inesperadamente contra o seu inimigo, tratando o mal com o bem, faz com que os miolos do inimigo fritem de tanto ele pensar na vingança que não veio, e no caminho libertário de paz que o opositor abre através do bem. Os presídios deveriam fritar miolos! Já vimos isso ao longo da história. Um começou e o outro foi influenciado por esse. Refiro-me à Ghandi e Luther King Jr. A estratégia da não violência já venceu aqui nessa terra. Os adversários se dobraram mediante a culpa que sentiram pelo que estavam fazendo. Mas foi preciso fazer com que enxergassem que havia seres humanos de ambos os lados.

Quais oportunidades, das que ferem o íntimo, foram concedidas por nós e nossos governantes aos encarcerados, que nos dê autoridade para reclamar a vida de cada um deles?

O mundo está tão violento, que foi necessário comparar as boas ações com a violência para que alguém me ouça, pelo menos dessa vez. E que as ações sejam bem rápidas, pois a cada dia, um número significativo de detentos ganha as ruas sem ter sido recuperado como convém.

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“(…)Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor!

Hosana nas maiores alturas!” Mateus 21.9

Hosana, a expressão mais palpável do pedido de socorro dos judeus! O momento político em Jerusalém era crítico. Os romanos cada vez mais pesavam sobre o povo o jugo dos impostos. A condução da Pax Romana, a pacificação imposta por Roma, assim como causava resultados, feria a liberdade do povo e seus costumes. Havia uma insatisfação por parte do povo por ser conduzido por aqueles que vencendo deixaram marcas terríveis em cada povo conquistado. Diante de tudo isso, havia uma expectativa imensa de que o Messias proclamado pelos profetas estava por chegar, mas ao mesmo tempo o que o povo e principalmente os judeus aguardavam era um Messias que realizaria a vontade imediata, terrenal e política.

Assim sendo, aos brados de Hosana!Hosana!Hosana! mesmo montado num jumento, Jesus é aclamado como aquele que iria salvar o povo de sua miséria imediata. O que significa Hosana? Este bravo reverbera a necessidade e urgência do momento. Hosana quer dizer: Salva-nos agora! Na concepção do povo, eles precisavam da salvação política, ou seja, de serem libertados do peso de Roma sobre eles e não mais poderiam esperar.

Muitas serão as interpretações desse texto em comparação com a atual crise política enfrentada pelo Brasil. Porém, entendo que ainda que como os judeus roguemos pressa e ações de acordo com o nosso entender de justiça, só Deus sabe o que é melhor para todos nós, como só Deus sabia o que era melhor para os judeus.

Mediante o exposto, quer pelos meios de comunicação, ou pela maneira como acompanhando a vida política, pode-se perceber, há sem questionamento uma urgência profunda que a condução política do Brasil seja mudada – e nenhum nome hoje é visto como capaz de realizar tal proeza. Por isso, os brados de Hosana, são mais do que oportunos nos dias atuais. Aquele mesmo que ouviu em Jerusalém, precisa ouvir da boca dos brasileiros o pedido de socorro tupiniquim.

A diferença entre ontem(tempo de Jesus) e hoje(dias atuais) é que, naquele momento entendia-se que Jesus os salvaria apenas politicamente, hoje se entende que o mesmo Jesus, só salva espiritualmente. Um país que está chafurdado na lama da imoralidade política, necessita tanto de um como de outro para resgate total de uma nação.

Para tal, os que bradam Hosana, e espera-se que estes brados surjam da igreja de Cristo, devem, sobretudo se resguardarem, ou seja, não adianta gritar num dia Hosana, e no dia seguinte Crucifica-o. Sendo mais prático, hoje, diante de tanta atrocidade, o culto do Senhor necessita começar no templo, ou onde for o lugar de reunião das pessoas, e não ser interrompido durante a semana. Ele deve ser algo comunitário, mas também estendido na solidão do crente em trabalho com outras pessoas. Deve ser tão relevante, capaz de sair pelas portas da igreja e avançar pelos crentes os lugares mais altos desse país. E ser tal maneira coerente e impactante, que a resposta dos gritam Hosana alcançará êxito!

Êxito pelo Cristo que vivendo no crente coerente, salvará um país política e espiritualmente!

Hosana sim! Mas sem deixar de ser a igreja a resposta para o pedido de socorro!

Hosana nas maiores alturas sim! Mas sem que a igreja se esqueça da terra que sofre por sua ausência de relevância! Ocupemos os lugares deixados; nas novas oportunidades nãos desperdicemos como antes e no momento de vitória, glorifiquemos a quem clamamos O: Hosana!

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rede

 “Mestre, havendo trabalhado toda a noite, nada apanhamos,

mas sob a tua palavra lançarei as redes.”

Evangelho segundo Lucas

 Todo fim precede um começo. Não há como começar um Novo Ano, sem a morte do ano em questão. As sementes fenecem para brotar. Os rios terminam e começam os mares. O fogo se apaga e inicia o jantar. O ventre murcha, acaba e a vida começa a ser contada. O pássaro pousa e a noite se inicia. O vento morre então a chuvarada cai. A flor é cortada, ferida, levada à morte e então nasce o buquê da noiva. A pessoa falece e para sempre nasce no peito a saudade. TS Eliott já dizia, “(…)no meu fim está o meu começo” . O fim precisa existir. O começo carece de a existência vir a ser inexistência.

Eles estavam no final de uma jornada. Penso que haviam passado dias atrás dos peixes. Horas e horas lançando as redes e tudo o que subia à embarcação era frustração. Os braços extenuados clamavam pelo retorno precipitado, mas as obrigações eram mais convincentes do que o desastre da pescaria mais infrutífera do mundo. Assim fizeram por horas e dias, até que sem provisão suficiente, e já combalidos por tantas vezes olharem para a rede vazia, os pescadores decidiram voltar à terra firme.

Não havia ninguém na praia quando chegaram. Que sorte! Nenhum curioso para presenciar a pescaria mais desastrosa do oriente. Mas enquanto eles rapidamente concertavam as redes para fugirem do barco da vergonha, surge Jesus, e junto dele uma multidão. Quem teria contado a ele? Quem teria avisado para aquele povo que pescadores sem peixe estavam desembarcando naquele lugar e àquela hora?

Redes furadas, embarcações vazias, tripulação extenuada… lembro-me de Carlos Drummond de Andrade, quando sentindo o fim e nele o ressurgir do novo começo ele diz: “Doze meses dão pra qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente”.

A pesca havia terminado – e de maneira trágica para qualquer pescador, mas havia um amanhã novinho em folha surgindo em Genesaré, e isso significava que as possibilidades de que as coisas fossem diferentes das ocorridas na noite anterior, na jornada anterior, estavam bem próximas de se tornarem fatos. O amanhã pode ser diferente. A morte da noite precede o nascimento da manhã, e com ela o renovo alcança os que cansados consertam suas redes na existência. Ah! O milagre da renovação!

Jesus decide embarcar num dos tristes batéis e assumindo-o como novo comandante ordena lançarem as redes mal consertadas pela escassez de tempo na praia rasa e sem possibilidades de boa pesca. Surpresa de todos! Os barcos recebem um enxame, um rebanho, uma constelação, um coletivo de tudo o que existe de peixes! Quem diria, que após jornada horrenda, após nefasta madrugada, haveria um amanhã coroado de glória?!

O ano que acaba de morrer, pode ter sido a sua experiência da madrugada mais extensa de sua vida! Ele pode ter significado a rede mais avariada que já chegou a suas mãos. O ano que acaba de fenecer pode ter sido a embarcação mais vazia a aportar numa praia de pescadores. Ele pode ter marcado você de derrotas, frustrações, vergonhas, luto, ódio, mágoa, tristeza, surpresas ruins, tropeços e avarias incalculáveis,… ele pode ter sido a pesca mais desastrosa do seu mar. Ainda assim, ele não existe mais. Ele morreu para que o milagre do renovo encontre sua vida e se torne seu principal timoneiro. O amanhã será diferente. Porque todo amanhã nasce da morte do ontem. Apenas isso, e estarei convencido de que a praia do amanhã sempre renovará minha alma.

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“O ovo não cabe em si, túrgido de promessa,

A natureza morta palpitante.

Branco tão frágil guarda um sol ocluso,

O que vai viver, espera.

Adélia Prado

 

Ao contrário da história narrada pelas Escrituras Sagradas, em que um pequeno adolescente, Davi, ferido em seu patriotismo agudo, avança contra um gigante, e por meio de uma funda – o estilingue da época,  acerta-o em cheio, o suficiente para nocautea-lo, o momento tem sido de derrotas freqüentes de nossos Davis. Os Golias hipermodernos têm vencido nossos Davis.

Longe de personificar o novo Golias que ferozmente causa baixas contínuas aos nossos Davis, o gigante de hoje, não se apresenta por nome de alguém. Ele se faz agigantado em nossas omissões, ainda que diminutas diante de tudo que vêm ocorrendo com nossas crianças e adolescentes.

Há tantos e tantas Davis espalhados nesse mundo sob condições subumanas.

E outros Davis que lutam não por uma condição socio-politica desfavorável, mas por uma condição que a vida assim impôs. É claro que a partir disso, eles passam a integrar a lista de crianças e adolescentes ignorados pelo governo, mas são fruto de enfermidade. De algo que surge de repente e os coloca como os mais bravios de todos os Davis.

Eu me refiro às crianças e adolescentes que se encontram em tratamento contra o câncer. Não vejo, Davis tão briosos como eles.

Todavia, como Adélia os vejo. Os Davis, que lutam contra o câncer, pra mim são como ovos da Adélia. São como ovos, numa fragilidade ainda mais perceptível. Porém, guardam sol dentre de si. Um sol escondido como nos dias em que as nuvens insistem em escondê-lo. O calor revela sua presença, a claridade, mesmo que diminuída sua intensidade, também está lá. E, por mais que os adultos não consigam enxergar a plena vitalidade do que se apresenta à frente, mesmo diante de um sol escondido, as flores e as crianças sempre reconhecem a grandeza do sol. As flores se abrem numa rendição de que a vida continua, apesar de algumas nuvem que passam entre elas e o sol. E as crianças sempre insistem, se é dia, mesmo diante de um sol preguiçoso em meio às nuvens, é hora de viver a brincadeira do momento e brincar de viver no momento.

Os ovos da Adélia possuem vida. Mas eles devem esperar.

Quando era criança ficava magicamente preso diante do visor de uma chocadeira na casa de meus tios. Sempre, após de alguns dias de ser ligada a chocadeira, quando tocava o telefone eu torcia para ser da casa dos meus tios. Eles me comunicavam quando o primeiro de tantos ovos começa a se romper. Era melhor do que qualquer programa televisivo ou algo muito importante da época. A variedade de cores que surgia ante meus olhos, a explosão da vida a cada ovo que eclodia, os movimentos desajeitados dos bichinhos recém-libertos daquela caixinha oval… era tudo mágico.

Mas nenhuma chocadeira por mais fervilhante que seja é tão apaixonante quanto o abraço da galhinha aos seus ovos, e seu surgimento no terreiro com todos os pintinhos após um tempo de espera.

A Casa Ronald McDonald, a dos Davis mais pujantes, precisa de abraços. Tal como os ovos da Adélia. Há vida além da casquinha frágil. Há um sol desejoso em ser liberto. Há uma intensa luz que evoca horizontes para espargir sua beleza. Há sonhos que desejam respirar e viver num espaço em que se possa abrir os braços.

Além de tudo, como os ovos de Adélia, que não serve para bolos. Estão eles túrgidos, mas de promessas. Há algo mais vívido que promessa, quando se está dentro de algo?

Imagine então várias crianças e adolescentes cheias, túrgidas, porém de promessas.

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(…) Como pode um homem nascer, sendo velho?” João 3.4

 Quando felicitei o senhor Deoclécio, abraçando-o pelos seus cem anos de existência, percebi a raridade do momento. Poucos são os que aos cem anos de idade podem desfrutar lucidamente e em pleno vigor ocasiões como estas. A velhice para muitos é noção exata de que os dias estão se tornando poucos, esmaecendo na ampulheta da vida. O desgaste, as inúmeras experiências passadas, … dão conta de fazer com que o ser humano, avançado em dias, encare a velhice como maldição. Como última peça, última brincadeira da vida a ser pregada. Os adultos já elencam dentre suas fobias que o medo da velhice é um medo que está entre os primeiros. A sociedade demonstra o quanto há, e enraizada cada vez mais, uma indústria crescente que se nutre pela ânsia do ser humano em fugir da velhice. Então, cosméticos, intervenções cirúrgicas, academias, vitaminas, e tantas outras coisas, são dedicadas e destinas a conceder ao ser humano hipermoderno um caminho de fuga da velhice.

Rubem Alves, compara a velhice ao crepúsculo, em seu livro “As cores do crepúsculo – a estética do envelhecer”. Nele o autor além de demonstrar a velhice como sendo inevitável – o que é fato, ele abre os olhos dos leitores para enxergarem as dimensões, a grandeza, a beleza, as cores do envelhecimento. Como um crepúsculo, um entardecer de outono, assim é a velhice, que vê tonalidades diferentes chegam a cada instante, até se tornar noite. Os tons de laranja, azul, roxo, lilás, cinza, … encerram os dias de outono. Numa triste beleza assim pouco a pouco, eles anunciam transformações eternais. A velhice bem encaminhada, como os dias de outono, se encaminha lentamente, num verdadeiro louvor a Deus para a eternidade. O crepúsculo são como as notas finais de uma música, tão necessariamente belas como na introdução. É o retoque final da cozinheira no bolo recém tirado do forno. O crepúsculo são as últimas linhas do poema. É o último ponto dado pelo alfaiate. O crepúsculo é anúncio do definitivo, do que ficará para sempre, da finalização da obra, da finalidade, não do fim. Talvez pensando nisso, no crepúsculo, no entardecer, chamado velhice, T.S. Eliott escreve: “(…) no meu fim está o meu começo.

Ao olhar o meu irmão em Cristo – Deoclécio, com seus cem anos, eu faço a Jesus a mesma pergunta que Nicodemus fez: “(…)Como pode …?” e obtenho a mesma resposta que Nicodemus recebeu: apenas pelo Espírito de Deus. É pelo Espírito que somos presenteados, independente de tantos serem os anos, de um entardecer que glorifique o Pai. Para se tornar velho, basta os anos sobre nós. Para ser um crepúsculo que evidencia a chegada de Deus apenas pelo Espírito de Deus. Para adquirir dores, rugas, surdez, calvície, … basta o tempo com seu poder desgastante. Para ser um entardecer em que Deus se alegra em visitar, apenas pelo Espírito do Senhor. É elo Espírito de Deus, que mesmo provando do entardecer de sua vida, o irmão Deoclécio demonstra ser nascido de novo. Seus olhos aos cem anos demonstram limitação; seu físico nos conta, pelas marcas, os anos passados; seus passos, ainda que ritmados, narram tantos caminhos trilhados, e apesar de nos assustar com tamanha vitalidade física, afinal, estamos falando de um homem com cem anos, de longe é retrato de sua vitalidade espiritual, demonstrada pelos frutos que surgem a cada dia à sua volta. Nascido de novo, pelo Espírito de Deus, não espera o entardecer se fazer noite. Ele contribui para que o crepúsculo seja ainda mais belo com suas variações de cores.

Então, se o entardecer anuncia a chegada da noite. O envelhecer a realidade da eternidade. As noites de outono se tornam desejáveis depois de tanta beleza anunciada pelo crepúsculo. Um que nascido do Espírito de Deus, se torna entardecer anunciador, faz da eternidade um desejo sincero de quem crê em Jesus como Senhor e Salvador de sua vida. O nascido do Espírito de Deus, envelhecendo, vai crepusculando, entardecendo com cores divinais, louvores inauditos que anunciam a chegada da eternidade. A eternidade para o nascido do Espírito não é, e nunca será o fim, o ponto final, mas a finalidade, as reticências. Foi para esta finalidade que Cristo nasceu, morreu e ressuscitou. O nascido do Espírito, sabedor de tal promessa, esparge cores de rara beleza, pois o que se espera além do crepúsculo, jamais se contou ao mortal.

Envelhecer como se fosse crepúsculo divino é convidar a todos que assistem a desejarem uma eternidade gloriosa.

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Então, Jesus lhe disse: (…) faze isto e viverás.” 

Evangelho segundo Lucas 10.28

Inserida no contexto da conhecida parábola do bom samaritano, as ordens de Deus estão aclaradas, nítidas: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento;” e ainda, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Sobre tudo isso, Jesus recomendou: Coloque em prática que você viverá bem! Vejo que a essência da vida em abundância se complementa aqui. O eu vim para que tenham vida e vida em abundância, só tem sentido quando eu vejo Deus e percebo a presença e importância do próximo em minha vida.

O ser humano perde tempo e foco, quando ao perguntar a Deus: “O que queres de mim?” se lança num mundo de grandes projetos para grandes feitos. Desejo ser um renomado médico para Deus me usar; um famoso empresário para servir de instrumento nas mãos de Deus; um pastor de igreja que tenha pelo menos 3.000 membros, assim Deus me usará; um líder político de âmbito nacional, Deus com certeza me usará; um famoso cantor gospel, como Deus não usaria alguém assim? … e por aí outros tantos megalomaníacos projetos envolvendo o nome de Deus sem a permissão Dele. Longe de achar que Deus não se utiliza de pessoas assim, empresários, médicos, cantores, políticos,… o plano de Deus parece ser mais simples, onde cabe cada um de nós, em nossa vida mais simples.

Quando perguntar a Deus: – Pai, “ O que queres de mim?” Abra os olhos, ouvidos e coração, e saiba:

Deus deseja que coisas importantes sejam vividas, e não que pessoas se tornem importantes para vivê-las. Então: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo, de toda, de todas e de todo, não deixa um espaço sequer para outra coisa. Nada habita o mesmo patamar, o qual exige Deus que o amor por Ele esteja. O amor a Deus necessita de lugar especial (coração), de refúgio secreto (a alma), de extremada disposição (força), e de consciência tranqüila (entendimento). Deus exige exclusividade no local destinado para sua habitação. Ele exige silêncio, para que apenas sua voz ecoe no refúgio secreto. O Altíssimo exige exclusividade até mesmo nas forças que se dispensa. Que elas sejam voltadas primeiramente a Ele. O Senhor exige exclusividade por aquilo que se torna pensamento de cada dia. Para amar a Deus é preciso coração quebrantado, alma derramada, força contra tudo o que se opõe e a favor de tudo que conduz a Ele, e, mente que compreenda a necessidade do ser humano em amá-lo. Num clássico resumo do conselho de Deus, Ele diz: Ame-me mais que tudo!

Outro aspecto que consta no plano de Deus, ao responder, “o que queres de mim?” reside na figura do próximo. Deus não deseja apenas amor a Si, mas que seus filhos vivam em amor. Antes de grandes platéias, de notoriedade, de fama gospel, Deus desafia a cada um em servi-lo, amando o próximo, que geralmente se configura em pessoa distante, diferente, e que precisa se transformar realmente em próximo. O próximo está distante nas opiniões, no modo de viver, de enxergar a vida, de realizar suas ações… e para se tornar próximo, apenas por um caminho: o caminho do amor. O “o que queres de mim?” nunca estará completo apenas em amar a Deus. Ele só possui sentido quando ambos, Deus e o próximo estejam freqüentemente sofrendo o abastecer de amor.

Sabendo Deus que o ego do ser humano é altamente dilatado, expandido feito balões, seu apelo no intuito de ser compreendido é o retrato da sabedoria suprema – “amarás o teu próximo como a ti mesmo.” A exigência de amar o próximo, está em si mesmo. Deus põe um espelho na face do outro, não para ser melhor aceito, mas para que aquele que tem o dever de amar saiba, a princípio, que o próximo é tão falho e necessitado como ele. E se mesmo com tantas falhas o ser humano é capaz de amar a si mesmo, quais as razões justas, justificáveis para ele não amar o próximo? – pergunta Deus. Cada um tem o próximo que necessita amar e não que merece. O próximo que exige amor, é instrumento didático no aprendizado de Deus para o amor fraternal. Portanto, fica evidente que o “assim como julgares serás julgado” ganha sentido na relação de amor com o próximo. Aos que insistem em agir com preconceito, discriminação, rotulação, frieza, mágoa, rancor, falta de perdão, … o alerta! De maneira direta, e também clássica, ao resumir o amar a si mesmo dito por Deus, Ele volta a dizer: Ame-me mais que tudo, e isso inclui amar o próximo, por mais distante que ele esteja.

Enfim, lembremos das palavras de Jesus: “faze isto e viverás”. Talvez mediante isso, se tenha explicação quanto a tantos que vivem sem vida em meio à religiosidade, a tantos que cumpre apenas o que estipulam para si mesmos, a tantos que pensando em grandes feitos, esquecem das atitudes primordiais da fé. E você? Já perguntou a Deus hoje: – “O que queres de mim?” Depois de ouvir de Deus, faça, porque disto dependerá a sua vida, e vida em abundância.

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(…)

Quanto tempo dura a noite?

Meu cavalo perguntou.

O tempo é de Deus, eu disse.

E esporeei.

Adélia Prado

Quem já cavalgou sabe, que a resignação de um cavalo em pleno pulo de um riacho, é a maior de todas as frustrações. Seus olhos já estão do outro lado da margem, seus músculos bem rijos e ao mesmo tempo passíveis ao animal, preparados para a conquista, costas encurvadas numa osmose temporária,… e, então, as patas dianteiras se petrificam, o pescoço prostra-se ante as insignificantes águas, o animal se rende ao medo, e em questões de segundos, tudo é cancelado.

Não é mera coincidência, que a palavra poltrão, carrega sobre si as significações de covarde, tímido, fraco, medroso… o cavalo jovem, o potro, ou poltro, simboliza todas as citadas qualificações que achadas no animal podem ser identificadas também no ser humano. Todos um dia, fomos, somos ou seremos potros em determinadas épocas ou situações da vida.

O tempo por sinal nos exige trotes rápidos, ou passos lentos, e saber em que momento se deve correr, ou simplesmente passear, pode causar paralisação na caminhada. Bom é ter uma amazona como a Adélia, pois a vista escurece quando o tempo não nos é propício.

“Quanto tempo dura…?” é a angústia do ser humano. Tanto nos prazerosos momentos, quanto nos desastrosos. O que está se afogando pergunta a si, quanto tempo? O que observa o pôr do sol, tenta enganar a si mesmo dizendo, hoje será mais duradouro, e se pergunta, quanto tempo mais? Essa é a pergunta do presidiário, dos namorados, do enlutado, da gestante, do jardineiro, do moribundo… todos temos um “Quanto tempo dura…?” que acompanha o nosso ser. Perguntas de quem não deve fazer, ou se preocupar com elas. Somos o que somos para viver o tempo que nos é dado, o quanto não faz sentido pensar, nos desgastar por ele.

Palavras de Ricardo Reis, na certeza de que o tempo não lhe pertence, mas o viver é todo seu… “O tempo passa,/Não nos diz nada./Envelhecemos./Saibamos, quase/Maliciosos,/Sentir-nos ir.” As esporas de Adélia é incentivo para uma continuada, que não pensa no tempo em que se tem, mas no quanto se vive o presente que é oferecido. O sábio nos lembra, “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar; tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar de alegria; tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar; tempo de amar e tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz.

Quanto tempo dura? Não sei, e é bom não saber, pois o melhor de tudo é viver, sem tempo para se preocupar, só para se viver.

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O pastor de ovelhas

Havia naquela região, pastores que viviam nos campos

e guardavam o seu rebanho durante as vigílias da noite.” Evangelho segundo Lucas 2.8

 

Não chovia, nem a noite estava escura. As estrelas estavam aos seus lugares. O céu tinha colaborado com os errantes. Os pastores amontoavam seu rebanho numa planície extensa, que servia de espelho para as estrelas que brilhavam. Ali naquela planície, os pastores podiam ver o rebanho, que mansamente pastava de maneira circular, não saindo de perto dos seus olhares fitos. A matriz, uma velha ovelha que caminha à frente das demais, carregava o guizo, uma espécie de sino, que na silenciosa noite soava como choro de recém nascido, e deste modo, sabiam os pastores onde estava o rebanho.

Os pastores não tiravam os olhos dos campos, da terra e do rebanho, e deste modo, caminhavam e contavam estórias. Além de possuírem bons olhos, era necessário aos pastores, muita imaginação. Contavam estórias sobre chuvas tempestuosas, sobre raios que beijavam a terra, sobre lugares e pessoas que conheciam ao longo do caminho e claro sobre amores – aqueles que foram deixados, mas que nunca deixaram seus corações… e assim caminhavam, cantavam, e contavam estórias.

Aquela noite era para ser mais uma noite de olhos grudados no campo, na terra, no rebanho. Era para ser uma noite como tantas outras já veladas, mas não foi. Quando não havia mais estórias ou imaginação, quando o chá já havia findado, quando o cão que os acompanhava, de cansaço, já havia deitado entre os arbustos, eis que surgiu uma estrela, a mais brilhante e maior do que qualquer já vista por eles. Não era estória de ninguém, estavam todos pasmados, e emudecidos, e contemplativos.

Os olhos que antes não desgrudavam do campo, da terra e do rebanho, não se contiveram e olharam para o céu. Lá, puderam ver a beleza da estrela e ouvir um som, não da matriz e seu guizo, mas de anjos que cantarolavam uma música que tocava os seus corações. Olhar para os céus, sem retirar os pés da terra. Lembrar das coisas que vem do alto, sem tropeçar no sentido da vida aqui em baixo. A música ouvida dizia: “… paz na terra…” pela primeira vez souberam de uma história que não deixariam de contar jamais. Uma história que não era deles, mas que falava sobre eles, uma história que brindava a beleza, o seu resgate através do simples olhar que penetra os céus, não se olvida da terra e conjuga de uma vez por todas, o divinal, extasiante, com o real, por vezes frustrante, resultando na canção mais bela desse mundo: a canção pela vida, esperança e amor.

Sim,  é no campo – com os pastores, as ovelhas e a estrela, que se encontra o Natal. A junção daquilo que caminha no cotidiano, com aquilo que invade e modifica o sentido do viver. A junção das coisas da terra com as coisas dos céus. Os olhos mudam de foco, quando algo os chama. O dever dos olhos, de guardar o rebanho, é aniquilado pelo prazer de olhar a estrela e também ler sua mensagem. Porém, tanto céu, como a terra, nos indicam para os seus pares. Se olho os céus, sinto o cheiro de terra molhada, se olho para a terra, vejo anjos à minha volta. Tudo está ligado, através dos pastores, ovelhas e estrela.

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Amanhecer-na-ria

Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, (…)

Evangelho segundo Mateus

Quem nunca se furtou viver o presente para se atormentar com o dia seguinte? Quem nunca se deteve, na vida que se desenrolava, para imaginar e desse modo sofrer no como seria o dia subseqüente? Como se não bastasse o mal aproveitamento do dia, o ser humano entrega-se numa viagem ao amanhã, ao futuro e tenta organizar o que está fora de suas mãos. O que lhe resta então, é a inquietude que não colabora em nada em seu viver.

A insônia para muitos, é a fiel companheira doa inquietos e pensativos no amanhã. Adélia Prado, percebendo esse desconforto, o reproduz com sua sensibilidade peculiar…

O homem vigia.

Dentro dele, estumados,

uivam os cães da memória.

A ansiedade misturada à insônia, são cães que ladram sem parar e não há quem descanse com despertos animais pela madrugada. O medo do amanhecer se dá na noite anterior, na terrível expectativa do raiar do sol e com ele todos os seus desafios. O ser humano teme o que está por vir, e assim não cuida de viver o que já se fez presente. Nega o real, a vida que corre por suas veias e deixa-se prender no escuro e frio calabouço do amanhã, visto de maneira temerosa.

Lembra-nos Ricardo Reis:

Colhamos flores.

Molhemos leves

As nossas mãos

Nos rios calmos,

Para aprendermos

Calma também.

O amanhã foi feito para que novas perspectivas surjam com ele. É anúncio de nova realidade nascida a nosso favor. O amanhã é renuncia do ontem com suas dificuldades, e apontamento para tempos novos e melhores. É um desarraigamento do que já foi, e uma oportunidade de transformações definitivas. O amanhã não deve ser temido, ele é apenas uma criança recém-nascida que acabou de chegar e não sabemos como lidar com ela. Cheia de vigor e necessidades e trazendo em si aspirações de futuro glorioso, assim é o amanhã, criança que chora com fome de se tornar realidade.

Descanse hoje, para o dia que virá. Renato Russo, cantava: “Mas é claro que o Sol/vai voltar amanhã/mais uma vez/ eu sei…” A certeza da vinda de um novo dia, roga um descanso necessário e não uma inquietude miserável e contraproducente. O amanhã nos aguarda, novinho e com cheiro de carro zero. Basta-nos esquecer de sua aparição, vivermos o hoje, pois ele já foi um amanhã cheio de temores.

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